Cultivando uma mente apreciativa
Mestre Pu Hsien, fundador do Templo Tzong Kwan, nos fez uma pergunta em sua última visita ao Brasil: “se eu tiver um pedaço de pedra em uma mão e um pedaço de ouro na outra, o que você escolheria ter? Apesar de todos saberem que o ouro é muitíssimo mais valioso, ainda assim, continuamos escolhendo pedra ao invés de ouro em nossas vidas.”
Que escolhas a pedra simboliza? Tudo aquilo que cria infortúnios internos e externos, todas as futilidades que vamos acumulando, o lixo contaminado das emoções tóxicas e pensamentos nocivos se alastrando dentro de nossas mentes. Em contrapartida, o ouro é tudo aquilo que é nobre: as nossas qualidades positivas que são nutridas por meio da boa ação, de boas palavras e bons pensamentos.
Podemos achar que nossas vidas estão cheias de pedras. Talvez nossa realidade financeira, profissional ou afetiva não ande lá tão bem quanto gostaríamos. Podemos carregar muitas pedras de desânimo devido às memórias que ainda não soltamos. Muito acúmulo, muito peso, pouca força. É esse o ponto de vista que uma mente contaminada pela negatividade escolhe enxergar a sua realidade. É assim que escolhemos pedra ao invés de ouro.
Não é o caso de negarmos as dificuldades da vida, mas de reconhecermos que existem também muitas qualidades escondidas que nossa mente contaminada não consegue perceber. Temos em nós mesmos um potencial ilimitado, uma mina de ouro, mas que se não for reconhecida, é o mesmo que nada.
Nosso diamante esquecido
Se herdássemos de nossos ancestrais uma grande pedra de diamante, poderíamos ser ricos. Mas se esse diamante estiver envolvido por uma crosta de sujeira e barro seco, talvez acreditemos que seja uma pedra comum. De que adianta termos um diamante se não sabemos que é um diamante? Vamos jogá-lo fora e desperdiçar a preciosidade que temos em mãos.
Os ensinamentos budistas falam de qualidades relacionadas à natureza búdica de todos os indivíduos. Todos nós temos uma bondade inata, uma sabedoria luminosa, uma serenidade inabalável em nosso interior. Como o diamante encoberto por sujeira, essas qualidades estão envolvidas por camadas e mais camadas de lixo que vamos acumulando em nossas mentes, fazendo-nos acreditar que o nosso diamante interno é uma mera pedra. Portanto, é essencial que possamos reconhecer essa preciosidade interna e termos métodos para libertar nossas mentes dos inúmeros contaminantes que criam essa sujeirada toda.
Ciclo de Contaminação Mental
Contaminante mental
Tudo se inicia pela mente contaminada pelos três venenos: ignorância, cobiça e raiva. A ignorância é o primeiro veneno, que carrega crenças errôneas sobre a realidade, tais como:
- Anti-mudança: crença de que as coisas que nos dão prazer devam ser eternas, que os bons momentos sejam contínuos e que a nossa vida seja imune ao processo natural de envelhecimento.
- Felicidade equivocada: crença de que a felicidade seja necessariamente a satisfação dos nossos desejos e impulsos imediatos.
- Supremacia do eu: crença de que as coisas devam se enquadrar na maneira como consideramos apropriadas, segundo os nossos padrões do que é bom e justo.
Basicamente, as falsas crenças estão enraizadas na imagem do eu, ou seja, no apego ao eu. Desse apego ao eu, surgem os venenos filhos, que são o desejo excessivo (cobiça) e a aversão excessiva (raiva). Da combinação da ignorância, cobiça e raiva, todas as demais aflições surgem, sempre circulando ao redor do apego ao eu.
Com a mente contaminada, tudo o que fazemos se torna contaminado: nossas ações, os resultados internos e externos das ações e os hábitos que vão sendo formados. Com esses hábitos fortalecidos por meio das ações contaminadas, nosso veneno mental se torna mais forte e o ciclo todo se torna mais contaminado. Vamos criando mais crostas mentais, aprisionando cada vez mais o nosso diamante interno.
O Poder do Hábito
E se invertermos esse mecanismo? Se ao invés de sermos vítimas de nossos hábitos contaminados, investirmos em hábitos saudáveis, que removam as crostas de sujeira? Treinar hábitos é uma grande potencialidade humana, seja para o bem ou para o mal.
Há no meio científico, estudiosos empenhados em encontrar as melhores maneiras de modificarmos nossos cérebros e mentes para trabalharem a nosso favor. Especificamente, as pesquisas de neurociências lideradas pelo cientista Richard Davidson nos mostram quatro fatores essenciais que podemos treinar para desenvolver nossa capacidade para a felicidade: a resiliência, o olhar positivo, a atenção e a generosidade. O que tem sido cada vez mais comprovado é que a capacidade de sermos felizes depende mais da nossa resposta aos eventos do que dos eventos em si. Pessoas muito bem sucedidas profissionalmente podem ser miseráveis interiormente, ao passo que pessoas desprovidas de bens luxuosos podem ser habilidosas em encontrar felicidade nas coisas simples da vida.
Nossa investigação se baseia nas mensagens que a nossa mente envia para o corpo, ou seja, em como convertemos nossas boas intenções em bons pensamentos, boas palavras e boas ações. Em outras palavras, como o nosso corpo pode vivenciar a realidade positiva gerada pelas nossas mentes.
Para esse fim, não basta apenas fixar a mente em uma crença positiva. Também não basta ter uma conduta socialmente bem vista se interiormente não temos a intenção adequada. O ideal é a comunhão da prática contemplativa com a vivência dessa experiência. A proposta é trazer à mente suas qualidades, seus potenciais e a grande fortuna de ter nascido no reino humano. Sinta gratidão pelos familiares, amigos e todo o suporte que você recebe em vida. Sinta gratidão até mesmo pelas pessoas e situações difíceis que nos ajudam a crescer. A questão não é que tudo seja perfeito, mas dar-nos conta de tudo aquilo que contribui para o nosso bem estar e que costumamos tomar como banal. Não, nada é banal, tudo isso é precioso! Ser humano é precioso!
Marco Moura
Texto baseado no encontro de 02/08/2018 do curso “Vivência do Centro” no Centro Cultural Tzong Kwan
Parte 2 – Tempo e Impermanência
Ao iniciar o tema sobre a preciosidade da existência humana, utilizei como comparação uma pedra de diamante que revela nossas qualidades essenciais. Apesar de a condição humana ser tão valiosa, devido às crostas de sujeira e negatividade, temos dificuldade em reconhecer essa preciosidade. Negatividade são venenos mentais que contaminam nosso comportamento, geram consequências externas e condicionamentos internos que reforçam o ciclo de contaminação. A raiz desses contaminantes é a ignorância, que nos impede de reconhecer a vida tal como ela é em todo o seu esplendor. Precisamos desenvolver a clara compreensão a respeito de nossas próprias vidas para que a ignorância se dissolva. Ao utilizarmos o recurso da contemplação, visualizamos em nossas mentes aspectos positivos da realidade para, em seguida, aplicarmos essa compreensão por meio da vivência.
Dando sequência ao tema, abordamos agora a ignorância em relação à impermanência. Essa visão errônea carrega a esperança de que as situações que nos trazem contentamento devam ser eternas e que a nossa vida seja imune ao processo natural de envelhecimento. Quando nutrimos expectativas fictícias como essa, o sofrimento não tarda a aparecer.
O tempo
A primeira questão vem a ser: o que é o tempo? Que tipo de entidade é o tempo: relativa ou absoluta? Se considerarmos o tempo como uma entidade absoluta, devemos ser capazes de encontrar a sua raiz a fim de que seja revelada a sua natureza essencial. Devemos capturar o tempo para examiná-lo. Então onde podemos examiná-lo, considerando-se os três períodos do tempo: passado, presente ou futuro? O passado já se foi e o futuro ainda não chegou, então só contamos com o momento presente. Então vamos tentando achar o momento presente fracionando o tempo.
Podemos considerar este ano como o momento presente, e não o ano passado ou o próximo ano. Porém, um ano é muito tempo. Fracionando ainda mais, este mês seria o momento presente. E seguimos fracionando: esta semana, este dia, esta hora, este minuto, este segundo, este microssegundo; dividindo, dividindo infinitamente, chegamos à conclusão de que é impossível capturar o momento presente. Concluímos que o momento presente é subjetivo – dependemos sempre de um referencial temporal criado pelo homem (ano, mês, semana…) para assumirmos o que é o momento presente.
A função do tempo
Um lembrete passado pelo Mestre Pu Hsien é que temos em nosso dia 86.400 segundos para serem usados como bem entendermos. O tempo é neutro, mas podemos convertê-lo em condições positivas ou negativas. A maioria das pessoas desperdiça esses valiosos segundos para alimentar seus vícios e se dedicar a atividades que reforçam seus apegos. Ao contrário, se tivermos sabedoria, podemos converter esses segundos em recursos úteis para o bem estar pessoal e coletivo. Podemos investir em cultura, em habilidades, em atividades meritórias e no potencial da iluminação. Isso advém da compreensão correta entre causa e efeito, entre ação e consequência da ação, entre o tempo como recurso e a maneira inteligente de utilizar esse recurso.
O fogo da impermanência
É dito nos sutras que o fogo da impermanência está consumindo a nossa existência. Essa frase nos traz um sentido de urgência, de que não podemos perder tempo na busca da libertação do sofrimento para nós mesmos e para os outros. Reconhecer essa urgência serve como antídoto à nossa preguiça e negligência, fatores que nos colocam em uma posição de comodismo em relação às oportunidades que temos em vida. A atitude de comodismo faz com que não demos importância ao momento presente, faz com que cedamos aos nossos impulsos automatizados e permaneçamos em um estado de inércia. Para escaparmos do fogo do samsara, a diligência é fundamental.
Então como lidar com a impermanência? Podemos cair em dois extremos: ou a negligência, como foi citada, ou a hipervalorização do tempo. Quando negligenciamos o tempo, caímos no extremo do comodismo. Quando nos aferramos ao tempo, hipervalorizando-o, acabamos por nos tornar ansiosos e por adotar uma postura de vitimismo em relação ao tempo. Ambas são visões errôneas que impossibilitam a utilização inteligente do tempo.
A visão adequada tem a ver com a compreensão da relatividade do tempo e, igualmente, com a relação de maturação entre causa e efeito. Toda causa gera algum efeito, porém, para que isso aconteça, é necessária a combinação de certas condições, bem como o tempo necessário para a maturação dessa semente em um ambiente propício. Então podemos trabalhar nas causas necessárias para uma vida de felicidade através do reconhecimento das qualidades positivas e investindo nosso tempo nelas. Trabalhar naquilo que é valioso e abrir mão do que é prejudicial é o único modo de desenvolvermos nossas qualidades. Precisamos saber priorizar.
Observando a impermanência
Consideramos dois aspectos: a impermanência sutil e a impermanência evidente. Tudo está em constante mudança a todo momento, mesmo que não percebamos. Neste exato momento, nossas rugas estão sendo formadas, cada célula está se transformando, nós estamos alterando nossa composição interna através da respiração. Essa impermanência sutil não pode ser desconsiderada. Por outro lado, a impermanência evidente se mostra facilmente aos nossos sentidos quando percebemos objetos se quebrarem, notamos a mudança climática, situações positivas se tornarem infortúnios e vice-versa, etc.
A impermanência da vida
Por fim, e considerado mais trágico, temos o fato de que essa impermanência está nos conduzindo ao fim de nossas vidas. Dificilmente alguém lida bem com o fato inevitável de que um dia irá morrer. Por desviarmos nossa consideração a respeito desse fato, acabamos por carregar um medo imanente, o que nos faz viver de modo incompleto. Se considerarmos a impermanência sutil, veremos que não vamos morrer somente quando findar esta vida, mas que estamos morrendo a cada microssegundo. Veremos que o momento presente é único e precioso.
É muito importante aceitar o fato de que a morte faz parte da existência humana – aceitar o processo natural de envelhecimento e degradação do corpo físico. Somente quando aceitamos a morte como parte da vida, paramos de tentar fugir dela. Nesse momento, a vida no momento presente se torna radiante, por percebemos que o momento presente é tudo o que temos, é o único momento onde a vida se expressa. Reconhecendo a preciosidade do momento presente, nossa única aspiração se torna vivê-lo em completude. Podemos nos arrepender sinceramente dos males que causamos em vida e assumir uma conduta diferente aqui e agora.
Marco Moura
Texto baseado no encontro de 09/08/2018 do curso “Vivência do Centro” no Centro Cultural Tzong Kwan
Parte 3 – Desconstruindo o Eu
Verificamos no tópico sobre a impermanência, a insustentabilidade do tempo como fator absoluto – o passado e o futuro não existem agora; quanto ao momento presente, ele não pode existir sem que definamos um referencial, que pode ser este dia, esta hora, este segundo, milésimo de segundo, o que for. A questão é que essa é uma definição por convenção, uma fragmentação na continuidade do fluxo do tempo definida por alguém. Não é absoluta, é relativa a nós.
Agora, a questão é a identidade material. Será que os objetos e as entidades vivas que identificamos como indivíduos são providas de alguma substância permanente e absoluta?
Causa e efeito temporal
Sendo o tempo uma sucessão de momentos, cada momento é subsequente ao anterior. Podemos apelidá-los de “momento mãe” e “momento filho”, sendo causa e efeito. Na sequência do tempo, temos que o momento mãe gera o momento filho; este, ao amadurecer, se torna o momento mãe de um novo momento filho, que amadurece e dá sequência em um ciclo infindável. Sem que haja uma causa (ou mãe) como condição originária, nada pode nascer.
Quando consideramos os fenômenos existentes, sabemos que nada provém de um único fator mãe, mas de uma imensa rede de interdependência onde, havendo as devidas combinações, surge o fenômeno resultante. Desse modo, todo efeito filho tem uma série de mães. Se seguirmos rastreando quem são as mães de nossas mães e assim por diante, seremos levados a essa rede de interconexões infinitas.
Rastreando as origens de um fenômeno
Comecemos com algo simples, um objeto como um vaso de barro. Como ele surgiu, ou seja, quem são suas mães? A princípio, podemos definir os quatro elementos da natureza como sua constituição básica: a terra, na composição da argila; a água, dando junção às moléculas e ajudando no molde do seu formato; o fogo, no processo de aquecimento e endurecimento; o ar, na fase do esculpimento. Podemos incluir no elemento terra vários outros componentes físicos que serviram de matéria prima, tal como a tintura do vaso e eventuais adornos combinados na confecção do vaso. Além disso, o vaso surgiu a partir do trabalho de alguém como uma ideia. Na mente dessa pessoa, já existia a concepção de vaso como um objeto para se colocar plantas. Até conseguir fazer um vaso bem feito, o artesão deve ter feito várias tentativas anteriores – todas unidas como condição para a qualidade desse vaso e, portanto, participantes de sua existência. Podemos seguir infinitamente rastreando as causas das causas, mas um fator causal que não pode passar batido é o vazio.
O vazio como condição
O vazio é necessário para que o vaso tenha alguma utilidade, afinal, vaso é um objeto que serve para se colocar plantas. Caso esteja todo preenchido, se torna impossível colocar uma planta nele, então deixa de ser vaso. Outro ponto: se os elementos que compõem o vaso não fossem igualmente vazios, ou seja, destituídos de um eu permanente e sólido, não poderiam ser usados para confeccionar o vaso. Se eles carregassem uma identidade sólida, não poderiam cedê-la para o vaso. Para que o vaso surgisse, a identidade temporária dos elementos mães teve que desaparecer. Porém, da mesma forma, o vaso é vazio de identidade, sendo que ele é apenas uma combinação de elementos, que por sua vez, são combinações de outros elementos. Quando um vaso quebra, ele perde as características de um vaso e deixa de ser vaso. Portanto, a sua identidade é apenas a designação para uma combinação temporária de elementos com uma função específica.
As partes e o todo
Olhando para nós mesmos, podemos averiguar que acontece o mesmo. O nosso corpo também é composto dos quatro elementos. Quando chamamos alguém, dizemos “ei, fulano tal!” não dizemos “ei, terra, água, fogo e ar combinados na existência de pele, carne, ossos e órgãos internos, distinto pelo nariz grande, etc”.
O nome associado a tal pessoa já engloba tudo e se torna prioritário. Assim, os elementos primários menores tornam-se insignificantes e ocultos. Ninguém liga para o fígado do sujeito, o que importa é a pessoa em si. Então os quatro elementos e toda a composição anatômica do sujeito se tornam ocultos na sua designação nominal. As partes perdem para o todo.
Porém, a pessoa não vive sem o fígado, que é vital para a sua continuidade. Para o médico que vai operar o fígado dessa pessoa, pouco importa o nome ou as qualidades do paciente, o que importa são as características do seu fígado. Se a operação do fígado der errado, a pessoa pode morrer. Aqui, o todo perde para a parte.
Notamos aqui a interdependência entre o todo e as partes. O todo são as partes não isoladas. As partes funcionam na dependência do todo.
Onde está o eu? Nas partes ou no todo? Já que o todo existe exclusivamente na dependência das partes, poderíamos supor que são as partes, porém, as partes em si não são o eu. Se o todo são apenas partes em união, qual a consistência do eu? E se as partes, cada uma delas, também são o todo de partes menores, qual a consistência dessas partes? Resumindo: não há consistência nenhuma – nenhuma solidez, nenhuma identidade fixa, nenhuma independência. Somente um continuum sem começo e sem fim.
Vivenciando a interdependência
Quando começamos a compreender a inexistência de um eu isolado e independente por meio da sua desconstrução lógica, começa a não fazer sentido sustentar tantos apegos à nossa identidade e às nossas posses. Torna-se mais fácil praticar o desapego. Por outro lado, não podemos cair no extremo oposto que é dizer que não existe eu algum, que nada existe e que vivemos no vazio. Existe um eu sim, operamos na vida através de um eu, mas de um eu interdependente. Com essa visão, treinada a partir da contemplação e da experimentação vivencial, cultivamos a correta compreensão, que desmancha a ignorância e os demais venenos mentais. Extinguindo-se a causa do sofrimento, este enquanto efeito é eliminado.
Marco Moura
Texto baseado no encontro de 16/08/2018 do curso “Vivência do Centro” no Centro Cultural Tzong Kwan
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