O sentido que damos
O Dao De Jing é um livro magnífico que expressa os segredos da nossa existência. Não é que o livro revele segredos que deveriam ser mantidos ocultos, mas trata de uma dimensão que, de tão simples e profunda, não é de fácil compreensão. Logo na primeira frase, é dito: “O Dao que pode ser concebido não é o Dao autêntico“. Por “Dao”, entendemos a realidade suprema, além dos limites do nosso saber – algo impossível de ser confinado em palavras. Ok, esta é a premissa básica: nem tudo o que existe é inteligível para a nossa experiência humana. Ou seja, o nosso pensamento tem suas limitações. Usar as funções limitadas do pensamento para compreender a realidade suprema, que inclusive é a fonte a partir de onde o pensamento se torna possível, não é plausível.
A segunda frase diz: “O nome que pode ser enunciado não é o sentido autêntico“. Aqui, trata do uso das palavras. Nenhuma palavra que possa ser dita será capaz de fazer referência ao seu sentido real. Nesse enunciado, somos apresentados ao mundo fictício das palavras e conceitos.
O que as palavras dizem de fato? Elas tratam da realidade em si ou apenas remetem a conceitos, a mais palavras? Quando lemos uma palavra, em nossas mentes, fazemos a correlação entre a palavra e o objeto ao qual ela se refere, mas como lidamos com esse objeto? Atrelando-o a outros conceitos, como suas características e qualidades. Por assim dizer, uma palavra não pode tocar o significado, ela só pode tocar outras palavras.
As palavras estão presas e atreladas ao mundo das palavras, à estrutura linguística. Nesse mundo de conceitos, toda palavra é definida por outra palavra. Quando é dito no zen que a realidade que percebemos é como um dedo apontado para a lua, não devemos parar na lua achando que essa sim seja a realidade última. O dedo é uma seta que indica a lua, ou seja, o propósito do apontamento é indicar o objeto, porém, ao pensarmos na lua, ela também será uma indicação para os conceitos que temos sobre a lua, que remeterão a outros conceitos ad infinitum. Quando é que vamos tocar na lua verdadeira por trás das palavras?
O mundo das formas é como um dicionário, um sistema praticamente sem fim de informações entrelaçadas. Dentro desse sistema, não se pode tocar a realidade em si. Quem está nele apenas segue as regras do jogo. Tudo nesse mundo é definido por outros termos concordantes, sendo que os valores são sustentados pelas convenções criadas dentro do sistema. O comum acordo é que valida a autenticidade das coisas. Sem as indicações que apontam ao fenômeno, ele está isolado e não tem sentido. O que define padrões como beleza, riqueza e sucesso se não as normas estipuladas pelo grupo onde esses padrões operam?
É engraçado como achamos que as coisas tenham algum valor por si mesmas. Como pode um pedaço de papel ser tão valioso? Não é, não tem valor em si, até que seja impresso por uma instituição específica (casa da moeda) que lhe dê a forma daquilo que denominamos “dinheiro” e defina seu valor, que então é norteado pelo mercado financeiro. Sob certas circunstâncias e a partir de certas premissas, os valores são convencionalmente criados. Ou na linguagem budista, os fenômenos são designados a partir de causas e condições. Dentro de um sistema corrente, esses valores de fato operam – de modo oscilatório, temporário, subjetivo – mas funcionam. Existe um valor corrente.
Na era digital, as coisas são muito mais complexas. Nas redes sociais, a partir do momento que a quantidade de “curtidas” significa que muitas pessoas aprovam determinada ação/empreendimento, isso gera prestígio, o que abre caminhos para a prosperidade. À medida que a marca se desenvolve dessa forma, gera mais custos, demanda mais investimentos e passa a depender de mais curtidas, ou seja, se torna mais dependente do sistema de curtidas. Sua grandeza fica cada vez mais atrelada ao prestígio gerado pelas curtidas do que pelo seu benefício autêntico. Apela-se então para as estratégias de marketing e publicidade, explorando-se os valores convencionais e subjetivos dos vícios emocionais, paixões e tudo que não envolva a reflexão ponderada sobre o benefício real. O nome ganha vida e poder. Porém, como a marca apoia-se sobre produtos sustentados por valores convencionais, ela está em risco constante. Mediante uma reviravolta ou mudanças cíclicas, tudo se desmancha.
A reflexão que podemos fazer refere-se a questionarmos o valor autêntico das coisas.
– Qual o valor autêntico disso? Quanto desse valor é corroborado por convenções fúteis – quer sejam minhas, das pessoas ao meu redor ou da bagagem das tradições que carrego?
É preferível sustentar vantagens que estão presas a valores irrelevantes, mesmo que socialmente aceitos, ou abrir o coração e sentir-se conectado a uma realidade autêntica, mesmo que não faça sentido à multidão?
Marco Moura
Comentários