A evolução no caminho interior
Em um certo ponto da maturidade espiritual de cada indivíduo, percebemos que a nossa realização pessoal depende menos de elementos externos e mais da nossa capacidade interna de assegurar o nosso próprio bem estar. Percebemos a característica da mente de nunca estar plenamente satisfeita – mesmo nas melhores situações, ainda existem sentimentos aflitivos como a raiva, a inveja, o orgulho, a ganância e o medo. Por estarmos presos às condições externas, somos afetados pelas inevitáveis flutuações dessas ocorrências. Mesmo que sejamos bem sucedidos exteriormente, notamos que todo esse sucesso é dependente de eventos que não estão em nossas mãos, o que significa que não somos livres. No momento que notamos essa nossa incapacidade de sermos felizes por nós mesmos, começamos a buscar por métodos para o bem estar interior. Dentre esses métodos, temos práticas contemplativas como a meditação e outras atividades corporais, como o Qigong (chi kung) e o Taijiquan (tai chi chuan).
O iniciante nessas práticas, ainda acostumado com a mecânica da sua vida cotidiana, muitas vezes não entende que os benefícios dessas práticas ocorrem de uma maneira singular, sutil e a longo prazo. Quando o aspirante se rende ao imediatismo, logo abandona a prática e abdica de seus benefícios. Por isso, é fundamental que se compreenda nessas práticas como o método se inter-relaciona com o objetivo, ou seja, como o objetivo proposto é conquistado através da prática feita da maneira apropriada. Somente assim a atividade se torna consistente e não apenas um exercício vago.
A meditação, enquanto método, tem como objetivo nos auxiliar a reconhecer a nossa natureza original, que está sempre presente, mas encoberta pelos véus da ignorância. Semelhantemente, o Qigong e Taijiquan, embasados na filosofia chinesa, são métodos para nos integrar à natureza primordial do universo, chamada Dào. Em outras palavras, por meio dessas práticas, resgatamos nossa conexão com a nossa natureza interior, a fonte de todo o nosso bem estar. A realização última dessas práticas é resgatar a conexão interior, sendo que todos os seus demais benefícios relacionados à saúde física e mental são efeitos consequentes dessa jornada.
O Caminho
Como em todos os caminhos de nossas vidas, temos o ponto de partida, um intervalo e o destino. No ponto de partida, é onde a intenção de atingir o objetivo começa a se manifestar. No intervalo entre o início e o destino, existe todo o trabalho que fazemos e que vai nos aproximando do objetivo. Naturalmente, esse trabalho demanda empenho e constância, o que vai permitindo que avancemos no caminho. Podemos dizer que, por meio do investimento de nosso empenho e constância, vamos acumulando ganhos, agregando habilidades, somando cada vez mais. Tais ganhos podem ser materiais, conhecimentos específicos, habilidades intelectuais, posição social e tudo que proporcione uma sensação de aumento.
No entanto, em nosso caminho interior, esses ganhos podem significar perdas. Ao invés de estarmos avançando, podemos estar recuando. Por que isso? Porque a direção do caminho interior é, naturalmente, para dentro, para o estado original, onde os ganhos externos não têm utilidade. Vamos reduzindo nossas bagagens, partindo da dimensão da diversidade até chegar ao ponto onde só existe o Céu e a Terra, até nos dissolvermos na unidade. A plenitude interior é comparada ao estado de um bebê no ventre materno desprovido de qualquer posse material, mas pleno de vitalidade.
O retrocesso
Geralmente, quanto mais nós temos, mais aflições nós carregamos, mais responsabilidades nós temos para arcar com as nossas posses, mais apegados e orgulhosos nos tornamos. Isso não significa, por outro lado, que o problema esteja nos elementos externos. Ao contrário, está em nossas mentes. A questão é que nossas mentes não sabem lidar apropriadamente com esses elementos, pois carregamos uma tendência à possessividade e ao egoísmo. Devido a essa inabilidade, a mente converte os ganhos externos em perda interna, ou ganho material em perda no campo espiritual.
Com isso em mente, não vamos cometer o equívoco de achar que para ser feliz interiormente é preciso se desfazer dos bens materiais ou desaprender tudo o que foi aprendido e regredir ao estado de um neném. Não incriminemos o falso culpado. A mente do apego, a mente que se fixa é que converte esses ganhos externos em perda interna.
O avanço
Desse modo, o bem mais valioso surge ao abandonarmos a condição da inconsciência e deixarmos todos os seus falsos benefícios para trás. Conseguimos isso por meio do treinamento da mente da renúncia, capaz de abdicar dos ganhos pessoais e empenhada em conquistar ganhos para o bem coletivo. Renunciamos ao falso possuir, à tendência de reter aquilo que nos prejudica. Abrimos mão das atitudes autocentradas e de todo o entendimento de que o bem estar alheio seja uma ameaça para o nosso próprio bem estar. Essa renúncia pode ser um processo doloroso para o ego mundano, mas em algum momento se converte em felicidade autêntica.
Quando compreendemos que o nosso bem estar está totalmente inter-relacionado às boas condições ambientais e à felicidade de todos os seres, saímos da dimensão inconsciente em que nos reconhecíamos apenas como um fragmento da totalidade, um ser minúsculo lutando para sobreviver, e adentramos na dimensão consciente e orgânica, onde o ganho de um é o ganho de todos. Como deixamos de nutrir a solidez do nosso eu, quebramos nossas fronteiras e, desse modo, todas as nossas ações passam a visar o bem maior.
Esse é o investimento nas causas da felicidade real, aquela que não nos torna dependentes, mas livres. Nos libertamos do falso eu e estabelecemos nossa conexão com o eu real. Essa é a jornada.
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