Meditação e Vida Diária

Dentre inúmeros benefícios relacionados à meditação, os mais significativos não se restringem temporariamente ao período da prática sentada. Referem-se, sobretudo, às transformações a longo prazo advindas do estado de mente alerta aplicado na vida diária – uma mente meditativa. Como estabelecer um elo entre a meditação e a nossa mente do dia a dia de modo que não sejam atividades dissociadas uma da outra?

Contexto da meditação

Meditação é um nome genérico para diversas práticas de treinamento mental, sendo algumas mais restritivas em termos de amplitude focal (concentração), enquanto outras são mais abertas (atenção plena). Nesta abordagem de aplicação da meditação na vida diária, a ênfase é o estado de presença alerta, algo relacionado à prática da atenção plena (mindfulness) ao corpo.

A prática propõe estarmos presentes e alertas sem nutrir qualquer artifício criado pela mente, resgatando o aspecto de abertura natural da mente ao vivenciarmos a nossa própria realidade tal como ela é sem distorções e sem filtros. Que filtros seriam esses? Nossas inclinações afetivas, opiniões, conceitos, expectativas e o automatismo de classificar tudo ao nosso redor por meio de rótulos, o que torna nosso olhar tendencioso, nossa lucidez contaminada pelos venenos mentais e nossa atitude reativa.

Clareza sobre a importância de meditar

A motivação para meditar deve ser consistente se quisermos incorporá-la de fato em nossas vidas. Você está convencido da importância desta prática?

Há um simples fato de que corpo e mente são processos dinâmicos dentro da lei de causa e efeito. Sendo interdependentes, os processos físicos afetam os processos mentais e vice-versa, podendo resultar em felicidade ou sofrimento dependendo de como interagem.

▸ Corpo e mente têm um funcionamento integrado; quando operam em concordância, seus fluxos energéticos se harmonizam e experimentamos saúde e conexão espiritual;

▸ Quando em conflito, dissociando realidade interna e externa, enfraquecemos nossa conexão com a energia da vida e acionamos o processo de degradação. Grande parte do tempo é assim: nossa realidade física no momento presente segue de um jeito e a mente segue buscando algo mais em outra direção, na tentativa de transformar o presente em algo que ele não é. “Eu sou assim, mas queria ser aquilo; eu tenho isso, mas queria tanto aquilo…” Passamos a viver competindo com a roda da vida: ora ganhamos e conquistamos o que desejamos, ora as circunstâncias vencem e nos tiram o que queremos. Olhando ao redor, vemos que a sociedade é engrenada por essa competição, tentando vencer a todo custo o ritmo natural das coisas. Esse distanciamento da fluidez da vida é uma angústia de base.

Nossas mentes

A mente é um instrumento com um potencial criativo imenso. A inteligência pode ser aplicada, por exemplo: no desenvolvimento científico, em relações cooperativas e na otimização dos recursos ambientais. Porém, sua capacidade destrutiva também é grande. Em outras palavras, a mente é um instrumento neutro: aquilo que fazemos com ela é que define sua qualidade. Precisamos entender os processos da mente, que continuamente capta dados sensoriais (corpo) e os transforma em conceitos, o que se torna uma barreira para tocarmos a realidade ou vivenciá-la de modo autêntico. Toda experiência sensorial está exposta ao processamento mental; assim como um espelho exposto ao ar livre, acumulando sujeira.

Película conceitual

Não há nada estático na vida, há somente dinamismo. No entanto, tão logo tomamos contato com a nossa realidade física, a mente começa a processar a experiência em um mecanismo de tornar a realidade fluida algo mentalmente sólido. A partir do contato, o processamento mental inclui:

  • Sensação: nós adicionamos à experiência sensorial características afetivas de gosto ou aversão. Classificamos aquilo com o que temos contato como bom, ruim ou indiferente.
  • Percepção: nós categorizamos e classificamos a experiência de acordo com os significados internos que foram formados e coletados a partir de experiências anteriores tais como essa. Não existem significados sem precedentes históricos, ou seja, utilizamos referências do passado para discriminar o presente – referenciais inconsistentes e, portanto, ilusórios.
  • Volição: reagimos à realidade interpretada em nossas mentes. Se é algo que gostamos, as ações vão no sentido de aproximar, reter e apropriar. Se não nos agrada, vamos no sentido da exclusão: nos afastamos e tentamos eliminar.
  • Consciência: acrescentamos à nossa consciência a solidez dessa experiência como um registro que servirá de referência para as próximas experiências.

O modo usual de lidarmos com nossas experiências de vida classificando tudo em termos de agradável ou desagradável e gerando apego é um destaque do fluxo existencial. Não percebemos, mas ao avaliarmos conceitualmente as situações, nós nos destacamos da realidade fluida como sujeitos separados e destacamos o objeto também da realidade fluida. Tornamo-nos fragmentos da realidade. Assumimos que possuímos certos atributos e características imanentes que nos tornam indivíduos independentes. A isso, chamamos de ignorância.

Ilusão e sofrimento

Devido a esse dinamismo mental, estamos constantemente transformando nossa experiência objetiva em uma realidade inventada. Com isso, criamos uma camada conceitual (véu de maya) que nos impede de tocar a realidade. Perdemos nossa conexão com a realidade do momento presente, ou seja, com o único lugar onde a vida acontece e a felicidade pode ser presenciada. Perder a conexão com o momento presente é perder conexão com a energia da vida. É possível que a felicidade se encontre no passado ou no futuro? Muitas vezes, até usamos imagens do passado como referencial para reproduzi-las no presente, mas nunca é do mesmo jeito. No momento que a experiência passa, já é passado, já foi. O presente é o exato momento em que a experiência é registrada, é onde tudo se passa.

Sem a referência sólida do presente, a mente fica perdida em seu próprio mundo de memórias, opiniões e imaginações, criando um falso senso de satisfatoriedade no mundo exterior, nutrindo expectativas e até mesmo exigindo que o mundo se molde aos seus anseios. Veja: não há nada de errado em sentir prazer no mundo, mas fazemos isso como uma tentativa de reparar o vazio interno que surge da nossa desconexão com a realidade do momento presente. Então essa busca se torna um mecanismo gerador de sofrimento. Todo ganho externo se converte em miséria interna. Cada tentativa de encontrar felicidade acaba se tornando um giro na manivela do sofrimento, pois o que fazemos é criar dependência de elementos insatisfatórios. Só o que conseguimos é um remendo de felicidade temporária.

A grande questão é: como lidamos com o momento presente? Com aceitação ou resistência? A meditação é a conexão com a realidade do momento presente, com as coisas exatamente como são.

Observador ausente

Ao passo que a ignorância é a arapuca do sofrimento, a compreensão é a base para modificarmos nossas atitudes e nos liberarmos. Por exemplo: se vemos com clareza que a natureza da realidade é impermanente, então temos a chance de lidar com a impermanência; se vemos com clareza que a tendência natural da mente é criar camadas de conceitos, temos a chance de nos desapegar dessas camadas. Nós continuamente deixamos nos ludibriar por pensamentos que parecem mais real do que a realidade em si. Nosso ego é mais um conceito presente aí: nossa identidade no mundo da forma criada a partir da dualidade sujeito/objeto. Nós simplesmente nos deixamos convencer pela realidade que a mente apresenta; nós nos identificamos com isso e damos vazão ao ego.

A meditação apresenta uma realidade para além do ego: a observação sem observador. Não há necessidade de assumirmos uma autoimagem independente, mas nós continuamente buscamos a nossa identidade nesse processo – buscamos uma solidez, algo para chamar de eu, de meu. Na realidade fluida, porém, não existe eu – tudo é um processo. Observar sem um observador destacado da observação é a essência da meditação. Observação, observador e ato de observar como um continuum.

Meditação na vida diária

Meditar como se essa atividade fosse uma realidade e a vida diária fosse outra é incoerente. Não pode haver dissociação entre teoria e prática, entre idealismo e praticidade. Se meditação é observação sem observador (ego), ou experimentar a vida sem artifícios mentais, não é coerente levar a vida seguindo os impulsos do ego de modo inconsciente. É preciso escolher estar acordado, consciente, vigilante aos próprios processos.

Há certos procedimentos para a prática da meditação e tudo tem um porquê – a posição das pernas, das mãos, a coluna alinhada, etc. Tudo isso favorece a atenção e o fluxo interno da energia vital. Porém, não podemos nos sentir enrijecidos como se isso fosse uma imposição. A prática da meditação depende de uma certa leveza, devendo ser um pouco como nossa rotina diária: uma atitude de naturalidade, de não estar fazendo algo incomum. Ao mesmo tempo, devemos ter na rotina diária uma atitude meditativa, alerta, de vigilância. Por meio disso, ultrapassamos o modelo de “meditação” como uma fórmula (apenas um meio para atingir um fim específico) para que a vida diária seja uma continuidade da meditação e vice-versa. É assim que meditação e prática diária se integram.

Vigilância contínua

Meditação é reconhecer, é saber. Você observa a respiração e sabe quando está inspirando, quando está expirando. Na vida diária é a mesma coisa: você sabe quando surge o desejo, quando ele cessa, quando surge a aversão… Essa é a chave para não ser raptado pela mente. Sempre alerta! Observando os processos do corpo e da mente de modo equânime, sem lutar, sem suprimir e, sobretudo, sem se identificar com o conteúdo do pensamento como se a versão da realidade que a mente apresenta fosse algo real. Observe sem se deixar levar. Você apenas sabe; desse reconhecimento, surge a ação consciente e enraizada no momento presente.

Resumo:

▸ Meditação como um estado de presença alerta, um estado natural de atenção ao presente;
▸ A mente desatenta pode nos levar a uma realidade dissociada do momento presente;
▸ Dissociação do momento presente gera angústia e sofrimento;
▸ Por nos identificarmos com a realidade conceitual, costumamos tomar a realidade dissociada como algo natural e a atenção plena como artificial;
▸ Seguindo o caminho dissociado, perdemos conexão com a plenitude da vida e buscamos um sentido existencial associado à imagem fictícia do eu e à satisfação de seus desejos;
▸ A meditação nos conecta com a realidade tal como ela é;
▸ É preciso haver uma coerência entre a prática e a atitude diária (escolha consciente);
▸ A atitude apropriada é a observação sem o observador, sem identificação.

Marco Moura
Instrutor de meditação

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