O Caminho Marcial

Em eventos relacionados à cultura oriental, vemos como é grande o número de ocidentais interessados na atmosfera oriental envolvendo artes, cultura e filosofia. As sementes de afinidade pela filosofia budista estão presentes em muitas pessoas ora sendo cultivadas, ora em estado adormecido. Muitos descobrem essa afinidade através das artes marciais, cuja relação com o budismo pode ser evidenciada, por exemplo, no Kung Fu praticado pelos monges do Templo Shaolin.

O cinema explora bastante a relação entre artes marciais e filosofia, normalmente envolvendo a figura de um sábio mestre com habilidades descomunais e, quase sempre, fantasiosas. Os diretores sabem como as pitadas de sabedoria oriental cativam o público e como a figura de um mestre habilidoso desperta a nossa admiração.
A motivação do público de artes marciais para com o budismo nem sempre é compatível com a sua real proposta: cultivar a sabedoria, a compaixão e a concentração. Muitos, por exemplo, procuram a meditação para dominar o ch’i (energia vital) e adquirir super poderes. Quando se deparam com a disciplina necessária para se atingir algum grau de domínio da arte, normalmente desistem. Enquanto o ocidente quer resultados rápidos, a prática oriental exige tempo e dedicação. Somente com motivação sincera é possível prosperar nas artes marciais.

Por trás de fantasias envolvendo artes marciais e budismo, existe um fundamento filosófico real nas artes marciais chinesas herdado das tradições vigentes durante o seu desenvolvimento (budismo, taoismo e confucionismo) que influi na conduta do praticante. O universo das artes marciais é muito diversificado e, embora não exista um consenso unânime a respeito da conduta marcial, muitos mestres dão grande ênfase à cultura e filosofia. Em muitos estilos tradicionais, o aluno é avaliado não somente pela sua técnica, mas pela sua conduta moral, pela disciplina e concentração. Antes de avançar no aprendizado, o aluno deve mostrar até que ponto os ensinamentos adentraram em seu coração.

Quando arte marcial e filosofia andam lado a lado, a prática se torna um caminho (道 dào em chinês, do em japonês) – um caminho interior, um caminho para a paz. Embora o termo “marcial” se refira a guerra, não há incoerência em se utilizar a prática marcial para cultivar a paz. Os ensinamentos orientais sempre nos incentivam a observar os opostos não como separados, mas como polos distintos de um mesmo fenômeno. Devemos enxergar na sombra a semente da luz; no sofrimento, o potencial da liberação; no lodo sujo, o lótus puro. Como símbolo desse princípio, a saudação das artes marciais chinesas (敬禮 ging lai em cantonês) expressa a união harmoniosa entre os opostos: o punho fechado, yang, que pode agredir; e a palma aberta, yin, que pode deter uma agressão. Sol e lua em harmonia: um símbolo do não-conflito.

A intenção no coração do praticante é o mais importante, pois qualifica o seu caráter. A virtude (功德, gōngdé) do praticante é o reflexo das suas escolhas, do cultivo das qualidades apropriadas e enfraquecimento dos impulsos do ego. A agressividade deve ser abandonada diante do desafio. Uma pessoa pacífica não é necessariamente uma pessoa que não possa ferir alguém. Por exemplo, quem guarda rancor e não agride os outros por covardia não é uma pessoa pacífica. Uma pessoa pacífica por virtude é aquela que tem a possibilidade de machucar, mas que opta por ser amorosa e compassiva. O seu corpo pode ser uma arma, mas devido ao cultivo apropriado da mente, ela o utiliza como instrumento de paz.

A meditação tem um papel muito importante nas artes marciais. Ela treina o foco mental por meio da atenção plena, ajudando o praticante a manter a atenção em cada movimento do corpo. O praticante aprende a conhecer o seu poder interno, a direcionar os impulsos, a superar os obstáculos emocionais e a transformar o seu caráter. Pela auto observação, o praticante toma contato com a vulnerabilidade humana, conhecendo a si mesmo e ao oponente, aprendendo a proteger-se e a atacar, ponderando sobre quando ser flexível e quando ser enérgico.

O código de ética marcial é norteado pelo Wu De (武德), literalmente: virtude marcial. Enfatizando o respeito e a tolerância, os parceiros de treino são lembrados de que o treinamento não deve gerar o engrandecimento de um sobre o outro. O artista marcial deve saber retirar-se antes de o seu ego elevar-se.

Dentro da ética budista, observam-se cinco preceitos básicos: não matar, não roubar, não mentir, não se intoxicar e não cometer adultério. Tais preceitos são como mestres que ajudam o praticante a trilhar o caminho do aperfeiçoamento sem que o seu coração-mente seja corrompido.

Também foram incorporados princípios éticos do confucionismo. No Kung Fu ensinado no Centro Cultural Tzong Kwan, estilo Garra de Águia, bem como em alguns outros estilos, também são observadas oito virtudes a saber:

Oito Princípios, 八德 Baat Dak (cantonês) / Ba De (mandarim):
Lealdade, 忠 Jung / Zhong
Amor Filial, 孝 Haau / Xiao
Benevolência, 仁 Yahn / Ren
Conduta Reta, 義 Yih / Yi
Respeito , 禮 Laih / Li
Sabedoria, 智 Ji / Zhi
Confiabilidade, 信 Seun / Xin
Coragem, 勇 Yuhng / Yong

Havendo uma compreensão clara acerca do que compreende o caminho da arte marcial, o praticante assume um compromisso de seguir a conduta que pode levá-lo com segurança ao objetivo proposto: a harmonia. Com confiança no método, a dedicação de corpo, coração e mente o conduzem no caminho do aperfeiçoamento.

Marco Moura

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