A interação das consciências
Ao longo da vida, o ser humano vai compondo o seu mundo cognitivo com base em suas experiências. Cada contato com o mundo sensorial imprime em sua memória uma marca que chamaremos de informação-semente (bija), uma vez que cada informação é armazenada como uma semente com potencial para gerar pensamentos e compor o grande jardim da consciência. De acordo com o budismo, o contato sensorial depende de três fatores:
1) Sentido: órgão sensorial do sujeito observador. Olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo e mente.
2) Objeto: elemento passível de ser identificado ou observado. Imagem, som, odor, sabor, toque e pensamento.
3) Consciência: capacidade atrelada a cada órgão do sentido que reconhece a forma do objeto.
As informações sensoriais que nascem do contato do órgão sensorial com o objeto formam impulsos que chegam ao cérebro e são representados mentalmente de forma que possamos distinguir imagens, sons, sabores, etc. A consciência dos sentidos é o que nos permite essa cognição, caso contrário, as informações sensoriais não teriam qualquer sentido.
Outra porta de entrada de informações-sementes é a consciência da mente (mano-vijnana), que o budismo da escola yogachara chama de sexto sentido. Diferente dos órgãos sensoriais que dependem do contato físico com um objeto sensorial, a mente tem como objeto o pensamento. Ela é capaz de formular conceitos, planejar, repensar e administrar o conjunto de informações captadas pelos outros sentidos. Corresponde à noção psicológica de consciente ou vigília.
Porém, o processo cognitivo não pára por aí. Do contato sensorial até a consciência dos sentidos, podemos reconhecer os sinais como formas, mas o significado mental se dá quando essa informação-semente adentra no nosso grande banco de dados que é a consciência armazém (alaya). É lá que ficam registradas todas as informações que captamos. Tem o sentido de memória, de inconsciente e pré-consciente. É lá também que ficam as sementes kármicas que definem quem somos, as nossas aptidões e os nossos hábitos. Como o mar que recebe o fluxo dos rios, todas as sementes geradas pelas nossas ações e pensamentos fluem para a consciência armazém.
Por fim, uma última categoria de consciência é a consciência do ego (manas). Ela surge da consciência armazém como uma energia de apego que se identifica com certos aspectos da consciência armazém e se apropria deles com a ideia de “eu” e “meu”. Mais tarde quando a consciência da mente se apoia na consciência do ego tendo o “eu” como referência, a assimilação das informações sensoriais e dos pensamentos é sempre tendenciosa, visando beneficiar o ego que atua como um parasita entre a consciência dos sentidos e a consciência armazém. Sob influência da consciência do ego, a consciência da mente direciona intencionalmente as informações captadas com bases no desejo, fazendo surgir também sementes da categoria “energia de apego” que será plantada ao mesmo tempo na consciência armazém. O desejo, portanto, retroalimenta a consciência do ego, que prospera a partir do que é plantado na consciência armazém.
CONSCIÊNCIA | ÓRGÃO SENSORIAL | OBJETO SENSORIAL |
Visual | Olhos | Imagem |
Auditiva | Ouvidos | Som |
Olfatória | Nariz | Odor |
Gustativa | Língua | Sabor |
Tátil | Corpo | Tato |
Mental (mano vijnana) | Mente | Pensamento |
Egoica (manas vijnana) | Mente – Apego | Eu |
Armazém (alaya vijnana) | Consciências | Memória |
Uma forma de ilustrar essa interação entre as consciências é por meio de um ciclo de feedback ou retroalimentação. A partir de (1) um estímulo sensorial, há (2) uma série de conexões e eventos internos, culminando em (3) uma resposta verificável. A consciência dos sentidos representa o (1) estímulo. A seguir, (2) conexões é representado pela consciência da mente, que atua como um processador potencializador; pela consciência do ego, como um filtro adaptador que converte os sinais; e pela consciência armazém que é o banco de dados e processador principal que faz a maior parte dos fluxos de informações. (3) Resposta se dá pela resposta da mente e do corpo como um pensamento e uma ação resultantes.
Um bom experimento que mostra como os animais, incluindo o homem, podem criar mecanismos para responder aos estímulos do meio através dos hábitos é o do reflexo condicionado de Pavlov. Em seu experimento, utilizou como objeto de pesquisa a produção de saliva em um cão frente a dois estímulos: uma amostra de carne, que estimulava naturalmente a produção de saliva no cão e o estímulo sonoro neutro de um sino, que por si não produzia resposta no cão. Após oferecer carne ao cão repetidas vezes junto do estímulo sonoro, o cão passou a associar o som do sino à carne, de modo que o simples toque do sino era suficiente para fazê-lo salivar.
Da mesma forma, nós humanos aprendemos a associar os sinais captados pelos sentidos a conteúdos da nossa consciência, fazendo-nos produzir reações físicas. Não só sinais sensoriais, mas também pensamentos criados em nossas mentes afetam o nosso comportamento. Um medo cuja semente tenha sido plantada na consciência armazém através de uma experiência traumática pode estar associado a vários sinais identificados através dos nossos sentidos, gerando um condicionamento. Um estímulo que remeta a essa memória é capaz de nos fazer reagir de modo exagerado independente da nossa vontade, como um curto circuito entre a consciência da mente, ego e armazém.
Cada experiência produz informações-sementes guardadas na consciência armazém, sejam originárias das cinco consciências dos sentidos ou da sexta consciência, a mente. Essas informações-sementes vibram frente a um novo estímulo externo ou pensamento perfazendo uma resposta condicionada. Os estímulos externos podem ter livre acesso ao conteúdo inconsciente sem interferência da mente, por exemplo quando dormimos. Se quisermos viver como zumbis, podemos seguir as nossas vidas no piloto automático deixando que a consciência dos sentidos interaja diretamente com a consciência armazém sem que a mente consciente se envolva.
A consciência armazém é muito ampla. Nesse imenso banco de dados estão armazenadas informações-sementes pessoais (memórias de experiências, gostos e valores pessoais) e coletivas (convenções culturais, religiosas, regionais, até o inconsciente coletivo). A nossa capacidade de interagir com esse grande banco de dados é surpreendente, porém, precisamos sair do modus operandi. Somente assim podemos acessar áreas profundas da consciência armazém pessoal e coletiva a fim de realizar grandes transformações por meio da consciência da mente. Podemos ressignificar o conteúdo da nossa consciência e realizar inúmeras façanhas. Um exemplo é dado no vídeo abaixo.
Marco Moura
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