Vazio ou cheio é o seu olhar (sunyata - porta 1)

O ensinamento budista das “três portas da liberação” é uma espécie de guia para nos libertar da prisão. Que prisão? A prisão conceitual que criamos ao nosso redor e que nos ilude com uma apresentação falsa da realidade. Conforme ensinou Buda, a ilusão gera sofrimento. Entretanto, os ensinamentos de Buda não são afirmações categóricas para aceitarmos sem questionar, ao contrário, são setas indicando uma direção. Eles incitam o questionamento das nossas verdades rígidas. O ensinamento das “três portas da liberação” nos mostra o quão inconsistentes são os muros da prisão que nos envolve. Certa vez, um discípulo perguntou a um mestre zen: como posso sair da cadeia de sofrimentos? Ao que o mestre respondeu: quem, a não ser você, te colocou nela?

Primeira porta – sunyata (vazio)
Há uma frase que diz que a vida é um papel em branco que vamos preenchendo no dia-a-dia. Acho uma bela descrição. Imaginar que temos diante de nós uma vida inteira vazia para ser preenchida é bastante animador. O que acontece é que quando ouvimos isso, já não somos tão jovens. Achamos que a nossa folha de papel já está toda rabiscada a caneta e que temos que nos limitar a pequenos espaços em branco. É uma visão bastante pessimista e fatalista, mas o animador é que ela não é realista. Se verificarmos que a tinta da nossa caneta é inconsistente, descobriremos que a nossa folha de papel ainda está em branco. O papel e a caneta são sunyata (vazio). Nós utilizamos os nossos pensamentos como tinta para escrever.

Diante de uma vida com um vasto potencial, como podemos preenchê-la? Em primeiro lugar, devemos reconhecer com autenticidade que a tinta da nossa caneta sempre foi vazia e, para isso, precisamos entender o vazio. Como veremos, a nossa noção de vazio está bastante rabiscada. Ilustrarei de duas formas:

1) Diante de mim, há dois copos: um está com água até a borda e o outro está sem água. Pergunto: qual o copo cheio e qual o copo vazio? Qualquer um diria que o copo cheio é o que está com água. A própria pergunta induz a essa resposta, pois está implícita a dualidade de cheio e vazio, onde associa-se o cheio à água e o vazio à ausência de água. Porém, posso tornar ambos os copos cheios ou vazios sem tocá-los. Quer ver?
• Neste momento, eu afirmo que enquanto o copo de água possui apenas moléculas com três átomos (dois de hidrogênio e um de oxigênio), o copo sem água tem em seu recipiente o ar composto por moléculas com dois átomos de oxigênio, além de nitrogênio e de pelo menos mais seis gases. Poderíamos dizer que ambos os copos estão cheios e que o copo sem água é até mais cheio do que o copo com água.
• No entanto, a ciência afirma que cada átomo do universo é como se fosse um estádio do maracanã totalmente vazio, onde o núcleo que poderíamos considerar material é como um grão de feijão no meio do campo e os elétrons como se fossem partículas de pó. Assumindo que o que chamamos de matéria é basicamente vazio, diríamos que ambos os copos estão vazios.

Em poucos instantes, os copos transitaram entre o cheio e o vazio somente com o poder das nossas mentes. Basta mudar o nosso ponto de vista para observarmos situações distintas.

2) Tenho também uma faixa elástica. Vou esticando, esticando, até parar. Neste momento em que parei de esticar e fiquei estático, a faixa e eu estamos parados ou em movimento? Obviamente, parados. Nem tão óbvio… Eu continuo exercendo uma força para alongar a faixa. Diria-se então que eu estou em ação e a faixa parada. No entanto, há duas forças em ação: eu sou o agente que está ativamente gerando a tensão na faixa e ela está respondendo com uma força contrária de compressão. As nossas forças em equilíbrio dão a impressão de não haver movimento. Ambos estamos em movimento, então.

Somos criaturas fortemente identificadas com as aparências do que captamos pelos órgãos dos sentidos. Assumimos que o movimento seja um fenômeno que possamos perceber. Mesmo assim, há tantos fenômenos ocultos ocorrendo dentro de cada fenômeno aparente que seria tolice afirmarmos categoricamente que o que percebemos é tudo. Ainda temos o componente mental que, de acordo com a nossa linha de pensamento no momento, faz com que observemos um fenômeno de inúmeras maneiras possíveis. No final das contas, o cheio e o vazio são dois lados de algo que não é o fenômeno em si. O fenômeno copo, quer esteja com água, sem água, com refrigerante ou o que for, não estará cheio nem vazio. O cheio e o vazio estão em nossos conceitos, opiniões e julgamentos. O pensamento é que está cheio ou vazio e nós, enquanto observadores, usamos o pensamento para qualificar aquilo que observamos em termos dualistas.

Os fenômenos do universo são essencialmente sunyata. O vazio que é sunyata está muito longe da nossa noção particular de vazio, que depende do nosso pensamento. Enquanto nós atribuímos a qualidade de cheio ou vazio aos fenômenos segundo a nossa percepção, o sunyata independe de um observador. Se você for capaz de observar um fenômeno sem emitir uma opinião, sem atribuir um nome, sem reconhecer características individuais, poderá se aproximar do que seria sunyata. Como questionava Krishnamurti, você pode olhar sem um sensor, ou seja, observar sem um observador?

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Nós direcionamos o nosso olhar de acordo com as nossas convicções e inclinações. Quando você define uma opção, você exclui as outras e se torna parcial. O olhar do sunyata deve ser um olhar não condicionado, um ver sem olhar. Somente desse modo, poderia-se olhar a totalidade do vazio. Esse vazio é para nós como uma luz invisível cuja refração podemos observar manifestada na luz da existência. A nossa mente está nesse prisma – ela enxerga a diversidade de cores e formas, mas não a unidade invisível. Quando olhamos o fenômeno ótico a partir dessa refração, enxergamos os fenômenos como concretos e a nossa folha da vida como se estivesse preenchida. Porém, quando assumimos que essa refração vem de uma fonte invisível, deixamos de acreditar na nossa ilusão de ótica.

Da mesma forma que mentalmente fizemos o copo cheio de água ficar vazio e que pudemos reconhecer o movimento na faixa parada, podemos transcender a nossa visão ilusória da realidade mudando o nosso ponto de vista. Veja se consegue enquanto escreve o seu dia-a-dia!

Marco Moura

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