Nada a alcançar (apranihita - porta 3)

As portas da liberação nos mostram como nada existe independente do observador. Através da observação de um fenômeno, você vê as características e qualidades que escolher ver. A terceira porta trata da ausência de objetivos (apranihita). Em nosso mundo movido pela busca e pela concretização de objetivos, não parece ter muito sentido a inexistência de objetivos. Ao compreendermos profundamente como a nossa busca é sustentada por objetivos visando preencher uma necessidade inventada, ela desmorona. É possível mover-se na vida sem objetivos?

Os praticantes budistas visam a iluminação, assim como os cristãos visam o paraíso. Todos temos o potencial para nos tornarmos Buda e fazemos disso o nosso objetivo a fim de atingirmos a realização última, o nirvana. Mas nessa jornada, criamos uma linha do tempo separando-nos (sujeito) do objetivo. O nosso desenvolvimento gradual vai nos levando ao fim da linha para atingirmos a realização. Está implícita a noção dualista sujeito-objeto. O nosso caminho se torna um meio para chegarmos a um fim.

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Apranihita é a constatação de que nada falta aqui agora.

Esse modo dualista de enxergarmos não condiz com a essência dos ensinamentos. Buda disse que todos nós já somos Budas, não disse que podemos chegar a ser. Neste momento, você já é. O objetivo já está alcançado, então não existe mais nenhum objetivo. Não adianta acender uma lanterna em um ambiente todo iluminado. Simplesmente não faz sentido. Não adianta falar de atingir a budidade quando já se é um Buda. Temos que abrir os olhos e despertar para a realidade de que o caminho é um fim em si mesmo e não um meio para se chegar a um destino. Se houver qualquer objetivo que não seja o aqui e agora, você só estará se afastando da sua realização.

Você pode esticar as pernas e ter como objetivo alcançar os seus pés. O seu alongamento pode não permitir. Nesse caso, você treina alongamento até conseguir realizar o seu objetivo, que é alcançar o pé. Você transformou-se em sujeito e o pé em objeto. Quem os separou? Você não precisa alcançar o seu pé, ele já está alcançado. O todo já está completo. No momento em que a mente considerou que você está separado do seu pé, ela criou uma divisão e uma necessidade. A dualidade é uma ilusão, bem como o seu produto, o desejo.

A mente cria a divisão e cria o ego, que precisa ser sustentado com bases nessa divisão. O ego domina o indivíduo e domina o sistema coletivo. O poder comanda o mundo e, para que o sistema de poder seja sustentado, é preciso haver o sujeito e o objeto – o dominador e o explorado. O sistema depende de pessoas necessitadas, vazias, que precisam recorrer ao sistema para receberem aquilo que querem e, em troca, elas o financiam. O sistema como um todo depende de engrenagens individuais para fazê-lo funcionar e, para isso, ele quer que as pessoas sejam dependentes dele. Por isso, o sistema sustenta a alienação das pessoas, estimula os seus desejos, cria novas necessidades, ensina o consumismo e implanta a ideia de objetivo a ser alcançado. O sistema quer prendê-lo e Buda quer libertá-lo.

A tecnologia é muito útil em vários aspectos, mas o sistema também se apropria dela para criar dependência. Os produtos são constantemente atualizados e se você não seguir as evoluções e tendências do mercado, você compra a ideia de estar defasado. Muitas e muitas necessidades do homem moderno foram impostas pelo mercado. Se você tem o iPhone do ano passado, você é orientado a atualizar o seu sistema operacional para utilizar os novos aplicativos, mas somente os iPhones deste ano funcionam bem com o sistema operacional atual. Resultado: você será impelido a comprar um aparelho mais recente. Você estava perfeitamente bem com o aparelho do ano passado, mas o mercado criou em você um déficit que precisa ser preenchido e você passivamente aceita.

O nosso amigo João não comprou essa imposição. Ele optou por não ter telefone celular. Enquanto o sistema impõe que todos precisam de celular, ele teve o discernimento para avaliar por si mesmo se era uma necessidade pessoal e concluiu que não. Simplesmente não aceitou o convencionalismo externo e continuou livre.

Nós não precisamos pensar de acordo com a estrutura de pensamentos do mundo. Ela incentiva a dualidade pela ideia de que o presente nunca é o bastante e que você precisa de mais. No mundo convencional, a realização depende de uma condição: alcançar o objetivo. Esse objetivo soluciona um problema, que é a causa da busca – uma necessidade, uma falta, um buraco vazio. A causa é a ideia de que algo precisa ser suprido. A condição é que o objeto não esteja aqui agora. O efeito é o contexto que presenciamos: sujeito aqui e objeto ali. Trata-se de uma realidade dividida: o vazio de um lado, aquilo que preenche do outro. Na percepção dessa carência, é concebido o afastamento. A nossa estrutura de pensamentos abriga o conceito da divisão e o mundo que observamos confirma que tudo está separado.

Em uma mente unificada, não existe essa divisão entre sujeito e objeto, entre um vazio para ser preenchido e algo que o preenche. O ego cria a ideia da divisão para nos oferecer a possibilidade da completude, pois assim nós enxergamos uma função nele e concordamos em sustentá-lo. Ele cria o problema para ser a solução. Sem que haja uma necessidade, o ego é inútil. Enquanto nós sustentamos essa conspiração do ego, estamos nos auto enganando.

Mas lembre-se que a verdade está longe dos opostos. Nem vazio, nem cheio. Não podemos simplesmente ignorar os objetivos dizendo que são vazios, pois isso ainda é alimentar a dualidade. Afinal de contas, nós vivemos em uma realidade onde o corpo tem necessidades reais e objetivos que se não forem atendidos, a pessoa morre. É preciso sustentar o corpo, ter moradia, trabalho, estudo, etc. Não podemos simplesmente deixar passar.

O ensinamento é que o apego é a causa do sofrimento. Cumpra com suas responsabilidades sem se identificar com a estrutura de pensamentos do meio. Seja como o lótus, incontaminável. Atenda essas necessidades, mas não se envolva, não se identifique com o corpo. Faça o que deve ser feito e permaneça caminhando no presente com o coração pleno.

A ausência de objetivos trata sobre a base da nossa busca interior. Não há nada lá fora e em nenhum outro momento. Se não for aqui e agora, não vale a pena. Já somos plenos. Não havendo nada para se buscar, podemos caminhar aproveitando cada passo. A vida cotidiana no mundo das formas apresenta situações onde percebemos a divisão, a necessidade e o objetivo (dualidade sujeito e objeto). É preciso compreendermos que a causa disso tudo é a mente e, uma vez compreendido o vazio (sunyata), sabemos que a divisão é ilusória. Desse modo, acordamos dentro da ilusão. Desempenhamos o nosso papel no contexto da forma, mas o nosso coração repousa na realidade tal como ela é, o estado de paz e plenitude.

Marco Moura

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